Michaela narra sua trajetória até o jardim de lilases:
Não sei ao certo qual dia era aquele. Também não me recordo como arrumei a mala ,se tinha pressa, ou, se deitaria casa por ali.
Talvez a mala fosse vermelha, talvez cinza, talvez pequena.
Não sei se sentia a falta de minha mãe. A freira de quem não me lembro o nome, nem se era amável ( já não tem mais face ), me apressou, e disse que ele me aguardava.
Tampouco, suponho o sentimento que desceu comigo a longa e indiferente escadaria do colégio. As cenas empalideceram, estão tísicas, porém, vivas, ainda se movimentam.
Deixaria o internato que me serviu de casa por alguns longos meses. Ajoelhar e rezar antes de dormir, aquele quarto comprido com tantas camas quantas meninas sem rock, paredes sem pôster, missa às 7 da manhã de domingo, ovos fritos no almoço, sempre lavar o próprio prato, o sonhado chocolate (diamante negro)que só poderia ser comprado na cantina se eu me saísse bem na prova de matemática, o banho –pontualmente as 17, a sala de TV coletiva com ar de sala de espera hospitalar , as histórias sussurradas em segredo, a sala do piano – o único espaço em que eu me lembrava de casa.
A porta de ferro e vitral que levava ao hall se abriu. Lá estava ele. Meu avô.
Eu ainda não sabia que sabia ingressar pelos olhos e alcançar a hospedaria da alma. Mas, hoje, nesse regresso, a sensação é que se toda a vez que eu abrisse uma porta o encontrasse me sentiria sempre num lugar sereno, familiar, à farta sombra de um flamboyant.
De volta para casa, um gostoso cachorro quente me esperava.
Ela o havia preparado. Flora minha tia, morava conosco. Quando olho para trás ela está sempre lá, inteira, real, entre caldos e pães de mandioquinha. O feijão fumegante na panela de ferro. O arroz macio para afugentar a dureza dos dias. Sábia. Entendera ainda menina que a vida é cozimento diário no fogo brando e contínuo do esforço. Cuidava. Não avistava outro lugar para amanhecer.
Sentei –me à mesa.
À frente uma imensa vidraça. De lá se avistava o céu, mergulhado num azul silencioso, profundo em segredos. O entardecer chegava a passos mansos.
Guardei a luz, que entre nós flutuava em uma arca junto de algumas alfaias. De um modo inexplicável ela vem em meu socorro, sempre que a tempestade traiçoeira rouba-me a luz.
Lanchamos . Sentia- me cansada. Algo na casa parecia-me desconhecido , um toque de estranheza junto a brisa que entrava pelas frestas. Dormi no quarto rosa, infantil. Pollyannas, meninas assustadas, meninas curiosas de Andersen, de Perrault, dos irmãos Grimmm, de Lewis Carroll ,projetavam-se na parede branca à cintilância bruxuleante da pequena lamparina.
Não me recordo se estava feliz , se me senti segura ou se uma parte minha não havia retornado. No outro dia pela manha partiríamos e eu iria, então, reencontrar meu pai, minha mãe, minha irmã. Eles também iriam me encontrar – uma outra.
Nunca mais formei o quarteto, sendo justa, talvez, já não o compunha antes.
Fiquei a sós. Num lugar inventivo de mim mesma. Um lugar eu. Num querido jardim
de lilases.
Imagem: Lilacs, Grey Weather | Claude Monet, 1872 Orsay, Paris