Morávamos numa casa com janelões que convidavam o sol a entrar.
Os raios alegres multiplicavam-se aos milhares por entre os cômodos.
Regavam com calor as paredes frias e os cantos
esquecidos da casa.
Naquele tempo os
dias passavam vagarosos o que deixava uma impressão de que a morte era uma alegoria.
Algo longínquo.
Um personagem de La Fontaine ou de Esopo. Uma sombra bruxuleante em Perrault e Andersen. Um tio distante e já bem velhinho que partiu para lá.
E por falar nele: o céu.
Nas noites de verão as estrelas brilhavam uma luz menina contente em vestido de chita.
A brisa vinda do vale refrescava a pele como a mão leve e terna da avó suavizava a angústia em noites de pesadelo.
Minha mãe e eu passeávamos pela avenida Rio Branco.
As casas destemidas eram cercadas por muretas e portões
baixos -, deixavam ver as famílias à mesa do jantar.
Ouvíamos o barulho das louças, dos talheres, dos afetos, dos segredos.
Uma das casas trazia à porta uma placa em bronze, instruindo que ali morava um médico para quem precisasse de socorro.
As pessoas eram abertas , confiantes.
Não havia condomínios,
portões vigiados ou cercas elétricas.
Toda a cidade ouvia o repicar dos sinos que chamavam para a missa.
Gatos e corujas disputavam o controle das ruas do alto dos telhados.
O mundo era isso.
O vai e vem na cadeira de balanço antiga defronte à janela que deixava ver o pé de ipê extasiado pela beleza da lua .
Encantamento .
O mundo era isso .
Naquela casa havia uma vitrola e também discos infantis coloridos .
Amarelos , azuis , vermelhos .
Num desses vinis Dona formiga implacável deixava morrer de frio a cigarra bon vivant.
O coração da trabalhadeira desconhecia a compaixão.
A princípio a gaziza implorava por clemência. Sua voz ia aos poucos perdendo a fé e a pobre imortalizava-se junto aos cristais de gelo.
Lembro-me do desconforto ao ouvir a fábula.
Corria dela.
Mas , vez ou outra , ambígua ,num ímpeto de coragem me entregava.
Sofria pela cigarra.
Sentia ódio da formiga.
Um grande mal- estar.
Mas por que a buscava então?
Talvez porque quisesse eu conhecer também as noites de inverno.
Conhecer os inclementes – os que expurgaram de dentro si os suplicantes.
Ou algo maior .
Uma experiência que
permitiria- me ainda tão menina ter alguma ideia sobre quem eu era.
Cheshire pergunta a Alice – “quem és tu ?”
Por certo que algumas situações nos evocam essa questão.
E a fábula angustiante de La Fontaine era uma dessas.
Diante daquela crueldade como eu me sentia?
Como eu gostaria de intervir?
Naquela época em que o tempo passava vagaroso e o mundo era uma noite fresca de verão eu ainda não sabia bem.
Mas já conhecia o desconforto.
Não era indiferente à dor, à clemência.
Concebia a misericórdia.
Habitava em mim uma compreensão ainda analfabeta – desprovida de linguagem verbal,
de que haveria uma outra forma de encontro que não aquela moralizante, penosa, empregada
por Dona formiga.
Hoje traduzindo essa vivência percebo o susto.
Uma menina horrorizada com as masmorras.
O bem e o mal.
O certo e o errado.
O imperdoável.
Concebida do barro poético reconhecia no meu coração de menina o modo excruciante como era entendida a cigarra.
Pobre não teve a sorte de pedir abrigo aos pirilampos.
Esses por certo a aceitariam.
Ambos viviam de esperança.
Buscavam um par.
Um cantava e o outro piscava. Entrega não mais fácil , nem menos importante que o da Dona formiga dedicada ao bem do planeta.
E foi assim, numa época em que o tempo passava vagaroso que percebi em minha casa as janelas abrirem-se no frio para acolherem num cantinho (que o sol do verão amara e aquecera) as cigarras desterradas e condenadas ao purgatório.
E então, conhecer- lhes a beleza e agradecer-lhes o canto.