Aos oito anos mais ou menos assisti a um filme que se chamava Meu filho meu mundo.
Nunca me esqueci dele .
Na sala de casa entre vitrais coloridos a TV ocupava o centro do aparador de madeira escura.
A memória o guarda entre as cores que escorriam das vidraças floridas.
Pais de uma criança autista procuravam tratamento para ajudá-la.
Apesar da minha meninice não tirei os olhos da tela.
Naquela mesma sala em que vivenciei tantas outras descobertas distingo essa tarde por sua mornidão envolvente e íntima. Encontrei algo meu naquela história.
A percepção da interioridade e do mistério. Certa compreensão de que havia sombras dentro das gentes . Lugares inacessíveis. E a certeza de que esse oculto fazia morada em algum lugar que eu suspeitava chamar-se psique . Essa palavra – psique – também era uma aproximação intuitiva. Não estava talhada de compreensões ou significações. Assim como o beija-flor encontra o néctar eu era atraída pelo véu cintilante de Psiquê. Uma compreensão herdada ? Uma noção instintiva ?
Um reencontro ? Um eu em mim que conhecia o que não sabia que conhecia ?
A psiquê era admitida por mim como uma presença por trás das faces , das portas , das matérias , dos olhares , das lacunas , das loucuras , das gentes , das fumaças de nicotina , de mim mesma .
Amei a vida por sabê-la .
Achei-a de uma beleza estonteante .
Tratei-a como coisa sagrada.
A literatura – outra companheira precoce me deixava ver a existência da psiquê por trás de tudo .
Aos meus olhos meninos um universo secreto e profundo movimentava-se em cômodos , em sótãos , em diálogos , em tragédias , em acasos , em infinitas , infinitas coisas .
Conta minha mãe que depois de assistir ao filme disse a ela –
“ vou ser psicóloga .”
Foi então cerca de dez anos depois , aos 18 anos ,
já na faculdade que me encontrei
com Freud e a Psicanálise .
Psiquê até então exilada na inconsciência
tomou definitivamente seu lugar em mim .
Um lugar sagrado em que as sombras se misturam às luzes nascidas dos vitrais coloridos da infância.