*[Esse ensaio é uma composição inacabada . Ele inaugura um novo espaço no blog – Patchwork – uma colcha para temas infinitos.
Há motes que não são esgotáveis , tanto por sua verve artística que os colocam numa perspectiva infinita , como por conterem artérias profundas de emaranhado complexo.
O estrangeiro de Camus é um desses romances que poderá despertar um caleidoscópio perceptivo .
Essa coberta é confeccionada de retalhos em múltiplas estamparias – entendimentos psicanalíticos , associações filosóficas , poéticas , literárias , etcetera .Assim o ensaio permanece aberto e permite o acréscimo de novas porções .
Nesse primeiro momento o texto sobre o Estrangeiro recebe generosas frações de Psicanálise , alinhavos da minha leitura das obras do autor da filosofia do absurdo – Albert Camus , bordados poéticos e literários.
Sigo cerzindo a colcha .
O estrangeiro é um daqueles romances que me beliscou a existência . E por trazer comigo a concepção de Kiarostami sobre os filmes que nos encontram serem sequoias que crescem em nosso ser por toda a vida , assim o são também os romances.
O estrangeiro plantou em mim sua sequoia .]
Mersault um desalmado ? ou congelado pela ventania que sopra de um céu sem fim ?
Viver é para Mersault uma interação operacional com o momento presente.
Experiências sensoriais . Nada mais .
Sem conexões , significações, correlações ou compreensões .
Ele não habita a vida com o corpo e com a alma .
Talvez porque envolver-se assim lhe pareça risível .
Afinal ele tem a certeza de que não há como ganhar o jogo .
A finitude com sua mão implacável virá buscá-lo e Caronte gargalhará de prazer.
Essa contenda com o absurdo que é nascer & viver & morrer produz em Mersault um congelamento visceral de sua existência .
Não havendo como instalar-se definitivamente ou estando sempre à beira de ser expulso sente -se “ um estrangeiro passageiro de algum trem
que não passa por aqui
que não passa de ilusão .”*
Mersault é um estrangeiro nessa terra de passagem.
Não se naturaliza .
Uma presença ausente.
Não ama.
Não sofre .
Não odeia .
Resta que – ao ser perguntado pelo promotor porquê matou um árabe na praia – responde que foi o sol
A perturbação causada pelo sol levou-o a atirar .
Chovem risos hilários
entre os jurados.
Mersault assiste passivamente à acusação convincente do advogado do estado apresentando-o como um desalmado .
Afinal , não havia chorado no velório da própria mãe .
No dia seguinte ao enterro divertiu-se com Marie na praia e depois seguiram
os namorados para o cinema .
Mersault incriminado pela morte do árabe foi descrito como um ser frio. Impiedoso .
Seu advogado de defesa não pode salvá-lo .
Como o réu bem observou a acusação foi mais concludente .
Acabou sentenciado à pena de morte .
Na prisão após muitas recusas em receber o capelão , e na derradeira noite de sua execução , Mersault em face às lágrimas do clérigo experimenta o gosto amargo do ódio que lhe habita as cavernas papilares .
E vocifera :
“ Para que tudo se consumasse , para que me sentisse menos só , faltava – me desejar que houvesse muitos expectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio .”
Mersault recebe os dias
como quem recebe à ventania que emana doutras planícies . Planícies que ele não habita .
Desse modo vemos o promotor incomodado , obstinado e tentando reunir fatos sobre a vida do réu que apurem melhor se trata-se de um humano ou não . Peca o incumbido em procurar todas as
resposta nos anais da moralidade .
O próprio acusado no entanto presencia às elucubrações do homem da lei como quem
ouve a narração de uma história . Não a sua própria. Meneia a cabeça em sinal de aprovação quando o fato narrado é verdadeiro .
Concorda que não chorou no velório da mãe , e que foi ao cinema com Marie para a exibição de uma comédia no dia seguinte ao enterro . Demonstra perturbação com o calor intenso da sala do júri , mas não se desespera , nem tenta se defender quando lhe anunciam a sentença – será guilhotinado na praça em nome do povo francês .
É perguntado se tem algo a declarar responde –
“Não “.
Antes desse fatídico vaticínio questionado se amava Marie para casar-se com ela responde que poderia se casar embora não a amasse . Amar não é importante .
Mersault está vivo entre coisas mas não “ para dizer as coisas como elas jamais pensaram ser intimamente “ como iluminou Rilke em sua nona elegia .
Ele próprio se torna coisa no mundo . Vai ao velório porque sua mãe morreu e precisa atender ao pedido do asilo em que a mãe vivia .
Aceita casar -se porque assim quer Marie .
Mata o árabe porque se esqueceu de devolver o revólver a Raymond e o sol turva sua visão .
Mersault desconhece o eu que Rimbaud em sua curta vida conheceu – “ o eu um outro em mim. “
Esse eu nativo em Mersault lhe é imperceptível .
Um corpo que opera ações sem a presença do próprio ser . Um fenômeno complexo em que se vive sob uma estiagem emocional .
A vida emocional é expulsa da interioridade .
Mersault não conhece
“a dor e a delicia de ser o que é.”
Age .
Não contempla .
Não sente .
Não existe .
Fica assim desincumbido da tarefa da própria existência ou das consequências de ser autor da própria vida .
Desconhece a história psíquica por trás dos acontecimentos nos quais se enrosca .
Um Cão sem plumas / um Rio sem peixes desenhado em poesia por João Cabral .
Passa pela
vida “em brancas nuvens” até que …
Próximo à guilhotina pode ouvir seu próprio brado .
Descerrado o ferrolho que mantem prisioneira a sua alma , essa então gozando da temida liberdade grita a plenos pulmões todo seu ódio .